Tinha sido uma das fundadoras da pequena povoação de Stancha. Já passava dos setenta anos, no entanto, a sua vivacidade e o corpo rijo aparentavam menos de sessenta. Tinha sido famosa na juventude pela sua capacidade de participar, organizar festas e, sobretudo, mudar de namorado. Esta fama mudou por completo quando resolveu amigar-se com Djosa, por volta dos seus quarenta anos. Desde então, transformou-se naquilo que em Stancha se chamava de mulher séria, dedicada ao seu Djosa e de hábitos rotineiros e irrepreensíveis. Também ... não tinha outro remédio porque ganhava a vida como vidente e, para isso, tinha que ser muito respeitada. Se não, não seria procurada. Era uma questão de imagem e de credibilidade. Mambia sabia isso muito bem e era uma excelente gestora da sua imagem.
A sua melhor amiga, a comadre Tanha, que já vinha dos tempos da juventude, também não era uma pessoa qualquer em Stancha, porque era a dona da mercearia local que fornecia a casa de Mambia. Entre os diversos produtos de fornecimento diário não podia faltar aquele petrolinho devidamente aviado naquele candeeirinho de latão, trazido pela afilhada Biota que morava com Mambia.
A morte de Mambia apanhou Stancha de surpresa. Foi um alvoroço. Começou logo um vai-vem entre as suas muitas comadres e amigas. As crianças começaram logo a pensar na festa farta que ia haver. Já sabiam que só poderiam contar com os restos, mas, também sabiam que num velório como o da Mambia, até os restos tinham que ser fartos. Só os homens mantinham aquela postura muito masculina de homens de respeito, que não percebiam daquelas coisas. O que tinham a fazer era deixar trabalhar as mulheres porque essas, sim, elas é que percebiam do assunto. Quando muito, tinham que garantir aquele groguinho que não podia faltar num velório a sério e de respeito, como devia ser o caso, e ter a certeza que o compadre Djosa ia mandar matar o porco que tinha no quintal.
Em poucos minutos, toda a povoação já tinha conhecimento do triste acontecimento. Todas as amigas acorreram logo a sua casa para organizar o velório e o funeral da falecida. Tanha fechou a loja e assumiu o comando das operações. A medida mais urgente era garantir a presença das carpideiras e avisar o senhor padre para que a missa não fosse muito improvisada e a igreja devidamente decorada. Entre as mais faladeiras da povoação já constava, à boca pequena, que agora é que se ia conhecer os segredos de Mambia.
Nuna e Chica de Joana, as duas carpideiras mais conhecidas, foram logo vestir a preceito, com as suas saias pretas e compridas, lenço na cabeça a condizer e o xaile preto amarrado à cintura. Era necessário criar as necessárias condições para a competição entre os choros de Nuna e Chica de Joana, com os seus longos recados para os amigos e familiares já falecidos, até porque, tão depressa não iriam ter mensageiro de tamanha confiança. Não podiam faltar as lamentações pela perda da falecida, apesar de ela ter sido tão ingrata, a ponto de não avisar que ia fazer essa viagem tão longa.
Tanha, como a mais íntima das amigas, assumiu o comando das operações, distribuiu tarefas e organizou a logística do velório. Ela garantiria o café e o cuscus; Djosa ofereceu logo o porco que estavam a criar no quintalzinho da casa; Nuna ficaria incumbida dos pastéis de milho e o groguinho ficou por conta do compadre Manel Juquim, um reconhecido especialista do assunto.
O choro já tinha chegado num bom ponto porque já se tinha conseguido três horas seguidas só a mandar recados e a fazer lamentações. A competição entre as carpideiras já estava a atingir o clímax. A assistência continuava com uma atitude muito própria de quem já estava habituada a tudo aquilo e a lembrar que a compostura era indispensável.
Por pouco não se perdeu a seriedade própria de momento tão sentido quando Juninha arrancou bruscamente do seu canto, e num lamento treinado - de tanto lamentar a vida vivida e as mortes assistidas -, pediu então a Mambia para explicar ao seu Junzim que a sua campa era a mais pelada do cemitério mas não por falta de cuidado ou de carinho. Para ter muito cuidado com as intrigas que poderiam ser feitas através dos recados de gente invejosa. Não era falta de saudade nem desmazelo da sua parte. Pelo contrário, foi ela própria quem decidiu. Em vez de pôr água, haveria de fazer um «xixizinho» todos os dias em cima da campa porque cada qual chora por onde tem mais falta.
O velório estava muito criativo mas as papiadeiras da povoação ainda não tinham ouvido nada que pudesse parecer com um segredo daquela que foi a grande referência dos bons costumes da povoação. As carpideiras já tinham demonstrado a sua boa «perfomance» e já não se esperavam novidades. Parecia que já não havia recados a dar. Até Tanha, que não era muito dada a essas coisas, já tinha apresentado a sua guisa uma vez. Por isso, ninguém estava à espera que se voltasse a levantar uma grande guisa de pedido de perdão que, de início, ninguém percebeu, mas, aos poucos, quer porque se foi tornando progressivamente audível, quer porque não se esperava que fosse logo ela, a melhor amiga, a trair os segredos da Mambia. À medida que o choro foi prosseguindo, as palavras foram-se tornando mais nítidas e Tanha foi perdendo o seu ar de general na frente da batalha. Quando o choro deu lugar ao lamento, com palavras e frases articuladas, é que se começou a perceber que se tratava de uma dívida que foi cobrada acima do valor da conta porque afinal, a qualidade daquele «pitrolim de trapiche», não era tão elevada como a conta que tinha cobrado.
Os esforços de Djosa não foram suficientes para calar o falatório que se seguiu à volta do tal «pitrolim de trapiche» porque ninguém queria aceitar que Mambia, vidente séria e respeitada, poderia gostar do seu groguinho.
Chegado o momento incontornável da avaliação das carpideiras, não havia comadre ou compadre que não fosse da opinião que a melhor guisa tinha sido da Tanha mas ninguém queria enfrentar o viúvo que lá foi dizendo que já desconfiava que a comadre Tanha tinha mas é inveja do respeito que a Mambia tinha em Stancha.
Carlos Reis